SINOPSE

O passado, durante a época da crucificação de Jesus Cristo, e alguns anos que a precedia, une-se ao final dos anos 60 e início dos 70, no século XX, sob o impacto da contra-cultura e, entre estas, do movimento hippie. Aos públicos actuais, por sua vez – e numa época em que a fé e as igrejas crescem cada vez mais –, Cristo é mais palpável que os hippies de ontem, de um passado mais distante em comparação com os ensinamentos de Jesus, escritos no livro sagrado. Mas para sentir o verdadeiro impacto de Jesus Cristo Superstar, o público actual deve, obrigatoriamente, transferir-se aos anos 70, na sua primeira metade, quando o musical baseado na obra de Tim Rice (livro) e Andrew Lloyd Webber (músicas) chegou aos palcos e, logo depois, em 1973, aos cinemas pela mão de Norman Jewison. Na época da explosão dos musicais, em diferentes formatos, uma das interpretações – que parece um tanto aceitável – reside na fusão de épocas, e, ainda mais, de culturas e trejeitos sociais aproximados. Assim, a comparação entre o estilo de vida dos hippies (com o eterno “paz e amor”) casava bem às maneiras e pregações de Jesus Cristo e seus apóstolos. Dessa união nasce a grande originalidade desta ópera rock, pouco depois nas telas do cinema.

Jewison, na época, era já um director de sucesso. Havia realizado A Mesa do Diabo, com Steve McQueen, Os Russos estão Chegando, com Alan Arkin, e No Calor da Noite, com Sidney Poitier e Rod Steiger, sucesso estrondoso e em sintonia com a época, em prol da igualdade racial (como outros vários com Poitier). Logo, Um Violinista no Telhado, musical, provou que Jewison poderia ser, muito bem, um camaleão para a alegria dos produtores e dar-se bem com qualquer formato. Jesus Cristo Superstar, apesar da inegável qualidade artística e originalidade (natural da obra na qual baseia-se), não está a altura de Um Violinista. Mas, melhor do que o filme de 1971, tem a ver completamente com o momento, com os movimentos dos jovens nascidos na década de 1950 – ou seja, aqueles que queriam mudar o mundo e que, após a Segunda Guerra Mundial, ainda não tinham mantido qualquer contacto com algum período de depressão. O mais curioso é que, ao revisar alguns momentos da caminhada de Cristo, até à crucificação (e não à ressurreição), o público contestador da época tinha motivos para se alegrar e até mesmo se identificar com o “rei dos reis”. Ironicamente, Jesus Cristo Superstar estreitava o contacto da juventude e do movimento hippie com a figura religiosa, que teria dado a sua vida por toda a humanidade.

Essa união entre épocas e culturas, sempre com a intenção de extraír paralelos, reproduz um musical cujo conteúdo é deslocado do tempo. Cristo é quem concebe o show, seguido de perto pelos homens (e mulheres), como os apóstolos e bailarinos. As coreografias e toda a junção que se mostra a essência do espectáculo de Rice e Webber têm poder para agredir os religiosos conservadores mais do que outro formato ou versão da vida de Cristo – como A Última Tentação de Cristo, de Scorsese, mais de 15 anos depois também levado às telas do cinema. A junção de tempos e mensagens produz um filme longe de uma época, sem início e fim, isso quando se analisa o ambiente no qual se movem o protagonista e sua trupe e não a linearidade do texto. Essa visão, ao mesmo tempo, vai contra a ideia religiosa da criação do universo, pois, segundo as escrituras, tudo parte de um início (Génesis). Se entendido dessa forma, o filme de Jewison, assim como a peça, podem soar contestadores. Por outro lado, é bem provável que isso não tenha chamado a atenção dos conservadores – ou mesmo os tenha ofendido – em comparação com a fusão do hipismo com o cristianismo e os últimos passos de Cristo na terra.

Interpretado por Ted Neeley, o protagonista alimenta o show como numa história musical qualquer, em que as melodias fazem entender a obra. Sem a música, este espectáculo seria apenas uma peça de contra-cultura, uma fusão ajustada pelas coincidências. O género musical, vale lembrar, estava alimentado pelo cinema moderno, renovador, que via em homens como Bob Fosse um respiro de vida que não duraria muito tempo. Mesmo antes de Fosse filmar a representação de sua própria morte, Jewison celebrava em imagens vivas e singulares a dor de Cristo enquanto enviado para retirar os pecados do mundo. Há dúvidas em relação ao seu caminho, sobre como e porque se mantém em tal posição. Essas abordagens foram perfeitamente exploradas no drama de Scorsese, com uma versão do fim ainda mais dura e controvertida. O hipismo e sua política de paz são as saídas contra os romanos do império, contra os guardas vestindo calças de guerra. A somar, há ainda o Vietname, a guerra que abalou a opinião pública norte-americana.

No papel de Judas está o excelente Carl Anderson, melhor que Neeley. Se a morte de Cristo era inevitável, então não seria Judas apenas um “espantalho” a servir ao “milharal”? Fácil entender a história dessa forma e absolvê-lo. Por outro lado, tanto Judas quanto Cristo, em Jesus Cristo Superstar, são homens interessantíssimos enquanto condutores do show. Anderson imprime dor e realidade à sua actuação; Neeley, pelo contrário, concede ao público as preferências de um Cristo em dúvida, em momentos perdido, que vagueia por um deserto em busca de si próprio. Os vilões, como era de se esperar, são caricatos, abusam da sua própria forma e estão em sintonia com as composições aceitáveis do clima teatral. Por todos esses factores, trata-se de um filme correto à época em que se vê situado, de jovens contestadores e mensagens tão utópicas quanto a esperança de muitos conservadores religiosos, com poder para enviar jovens à guerra.

Enquanto mostrado como homem carnal e sem o poder de operar milagres, esse Cristo está ainda mais próximo do público de 1973. Pode soar perigoso unir a fé inerente aos personagens bíblicos com o show montado para servir de sustento à obra. São estes motivos os responsáveis por fazer o filme de Jewison algo “perigoso”, mas não satírico e muito menos insolente. Termina com a crucificação do homem, em dor, e não quer mostrar a ressurreição do “super-homem”, aquele acima do bem e do mal, irretocável e eterno exemplo dentro da ética cristã ainda presente. Para completar, resta a informação que a Maria Madalena aqui demonstrada é interpretada por Yvonne Elliman, actriz com traços orientais, e Judas, inteligentemente, está na pele de um negro, o imponente Anderson. Armas de guerra, um autocarro repleto de hippies e estruturas metálicas são alguns artifícios a servir à fusão, sempre com a frescura e a economia de Jewison. O resultado, pouco esperado, é diferente de tudo. Jesus Cristo Superstar é uma visão de libertação artística favorável, necessária, uma releitura das histórias que as crianças e jovens ouvem dos mais velhos e que, aqui, ganha nova roupagem. É contada de acordo com os novos jovens e contestadores das décadas de 1960 e 70. Está em sintonia com a cultura, com o desejo de uma geração.